quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

vestindo a camisa

(discurso proferido na cerimônia de homenagem pelos 25 anos de serviço completados na universidade do estado do rio de janeiro, representando todos os homenageados. sendo assim, significa um pequeno desvio na proposta deste blog, mas o texto inevitavelmente acaba se inscrevendo nesta categoria ao descrever as atividades de ensino e de gestão de design.)

boa noite a todos. 

saúdo a todos os presentes, na figura do meu amigo, o magnífico reitor professor ricardo vieiralves.

ao pensar sobre o que falar hoje, diante dessa homenagem que não é minha, mas dirigida a todos que completam comigo vinte e cinco anos de atividades na uerj, me deparei com uma questão: como falar da história desta universidade, se eu vivi apenas uma parte dela, de certa forma no isolamento parcial por estar fora do campus principal?

então me lembrei do que eu mesmo venho repetindo ao longo dos últimos anos, quando fui questionado diversas vezes sobre o fato de reportagens da imprensa ao mencionarem a esdi às vezes não citarem que ela faz parte da uerj: ora, e quando mencionam a esdi não estão mencionando a uerj? acho essa uma boa maneira de invertermos o processo de afastamento que sofremos (ou que buscamos) algumas vezes. 

decidi, portanto, falar um pouco da minha trajetória dentro desta universidade, e assim espero refletir as experiências dos muitos amigos que hoje conto nas faculdades de biologia, medicina social, geologia, química, matemática, psicologia, engenharia, artes, direito, educação, comunicação, física, odontologia, nutrição, enfim, em quase todas as unidades – de ensino ou administrativas – aonde eu posso dizer que hoje coleciono amigos.

pois os amigos que me permitam, então, começar a falar dessa história, e sintam-se homenageados nas minhas palavras e reconheçam-se nas minhas experiências.

começando a escrever, eu resolvi dar um nome à esta fala, com base no que ela significa para mim: "vestindo a camisa" (e também fazê-lo literalmente, com uma estampa de camiseta que remete à história da esdi, pois foi criada para o cartaz dos 15 anos da escola, em 1977). vamos então à história por trás desta camisa suada: 

aos quinze anos de idade, recortei do jornal o globo uma reportagem aonde carmen portinho falava sobre a esdi, que estava então sendo incorporada à universidade do estado do rio de janeiro. mas ainda não sabia que, quatro anos e dois vestibulares depois eu passaria a fazer parte dessa instituição. ou melhor, começaria uma nova e longa vida dentro dela. em novembro de 1978, há trinta anos, estive aqui como candidato a aluno, fazendo a inscrição para o primeiro vestibular da esdi realizado pela uerj.

desde o primeiro ano da esdi eu tinha essa mania de dizer sim a tudo, de me oferecer para tudo, de participar de todas as atividades, de me envolver com o que estava fazendo. talvez pela formação recebida dos meus pais, que me fizeram trabalhar durante as férias desde os doze ou treze anos de idade para compreender as relações entre trabalho, lazer, e escolhas profissionais. meus pais, embora felizes nas suas atividades, tiveram que sublimar suas aspirações profissionais da juventude durante o período difícil da segunda guerra, e por isso sempre nos estimularam a buscar a realização em atividades para as quais nos sentíssemos verdadeiramente vocacionados e com as quais pudéssemos nos envolver a vida toda, e com prazer. 

já no final do primeiro ano de faculdade eu estava promovendo um exposição, na esdi, que integrava nossos trabalhos aos do curso de desenho industrial da ufrj sob um mesmo tema, que hoje chamaríamos de design sustentável. e depois ainda levamos essa exposição para o parque laje, juntando trabalhos de alunos da puc. eu devia saber que ali estava começando alguma coisa que iria me acompanhar todos esses anos: um certo inconformismo com a acomodação, uma vontade de integrar atividades, idéias, escolas, pensamentos, em prol do crescimento daquela atividade que eu estava abraçando, seguindo o conselho dos meus pais, para a vida toda. e também constatar que ali, ao promover essas atividades, eu conseguia vencer minha timidez pós-adolescente e me comunicar livremente, me integrar. bem, mas eu não vou descrever meus quatro anos de esdi, meus encantos e desencantos, os trabalhos, as festas, o centro acadêmico, o final da ditadura, os ideais, as paixões. 

uma das atividades que eu desenvolvia na esdi era a fotografia, bastante valorizada na escola, e na qual eu vinha trabalhando profissionalmente desde muito cedo. pois foi através desse interesse que surgiu o convite, inicialmente intermediado por ex-colegas, para que eu assumisse uma posição no laboratório fotográfico da escola. eu tinha acabado de colar grau na esdi, no início de 1983, quando carmen portinho, diretora da escola, me fez a oferta, e dois meses depois o reitor joão salim miguel assinava a minha contratação.

passado o susto inicial – pois não via em mim a menor vocação para o ensino, e percebia que aquele poderia ser um caminho sem volta – resolvi aceitar o desafio. afinal, gostava de desafios. o salário podia ser considerado simbólico, mesmo para um recém-formado, e não permitia a dedicação integral. logo consegui alugar uma sala nas proximidades que me permitiu, nos anos seguintes, conciliar os projetos de design com a atividade na escola.

ainda no final dos anos oitenta (1988), logo depois de participar da montagem da exposição dos 25 anos da esdi, fui enviado como representante da escola a um forum sobre o ensino do design nos anos noventa, e acabei me tornando signatário da hoje histórica "carta de canasvieiras" que propôs os rumos do design brasileiro na década seguinte. o pedrão (pedro luiz pereira de souza), diretor da esdi logo após a saída de carmen portinho, deve ter percebido em mim alguma qualidade que eu mesmo não suspeitava. havíamos trabalhado juntos em projetos que iam muito além das minhas funções na escola, e ele devia saber que eu me desincumbiria adequadamente, representando bem a primeira escola de design fundada na américa do sul entre as outras tantas escolas presentes. entre outras coisas, havíamos trabalhado numa parceria com a itália que trouxe ao brasil grandes professores do politécnico de milão – designers, arquitetos, historiadores – dos quais fui até mesmo tradutor sem jamais ter "parlado niente" de italiano antes. acho que só pelo desafio...

mas nem tudo eram flores na escola neste tempo. no início dos anos oitenta, uma respeitável instituição, numa atitude que não condizia com a sua tradição, conseguiu junto à união a cessão do terreno ocupado pela esdi desde a sua fundação, alegando que neste havia apenas "quatro ou cinco cômodos de uma repartição pública sem importância". o desrespeito à uma instituição pública com a notoriedade da esdi obteve resposta na luta que se seguiu por duas décadas, e cujo desfecho ainda não aconteceu.

no início dos anos noventa, quando trabalhava junto com outros professores na formulação de uma proposta de atualização curricular, fui convidado a preencher uma vaga de professor substituto na esdi. a dependência financeira da atividade profissional no escritório, bem como a inexistência de uma pós-graduação específica na área de design me afastaram de aprofundar meus estudos. e assim, dois anos depois, minha carreira docente começou formalmente com um concurso para professor auxiliar. e não é que eu descobri que gostava – e muito – de aprender continuamente junto com os alunos?

pressionado por aquele vírus empreendedor que já me levara ao envolvimento em tantas atividades na esdi, aceitei o convite e o desafio do freddy van camp para trabalhar com ele na criação do centroesdi, centro de informação em design, aonde também comecei a me envolver mais diretamente com políticas públicas de design. essa parceria com o freddy (e com os outros envolvidos no centroesdi) me levou a participar por exemplo do concurso para o design das moedas do real, promovido para o banco central, e ainda na aventura de promover o design brasileiro num congresso internacional em toronto (sem qualquer apoio e pagando todas as despesas do nosso próprio bolso...).

e isso acabou resultando na nossa candidatura à direção da esdi, em 1999. a escola atravessava um momento difícil, cheia de indefinições, duvidando do próprio futuro, e o freddy, que já tinha sido diretor anteriormente, resolveu se lançar novamente, e me convenceu a embarcar nesse novo desafio. e como eu sempre gostei de desafios...

a história da escola trazia fama e reconhecimento para o seu passado. como lidar com o presente e os problemas que devíamos enfrentar? e quanto ao futuro da esdi? 

hoje eu poderia dizer que "traçamos uma estratégia de enfrentamento do presente e do futuro, num verdadeiro choque heterodoxo, distante das fórmulas tradicionais", e isso soaria muito bonito, mas na verdade, o que fizemos mesmo foi "tocar de ouvido" – emprestando da música uma expressão que cabe bem para descrever como enfrentamos nossos problemas usando as poucas ferramentas e recursos de que podemos dispor na maioria das vezes. resolvemos acreditar no potencial da escola, ignorar as grandes críticas, passar por cima de algumas urgências importantes, e apostar alto na inserção da esdi no processo de globalização. 

quanto ao futuro, foi iniciado um projeto – a nova esdi –  que mostraria o quanto acreditávamos no potencial da escola: quatro novos prédios com instalações para laboratórios, biblioteca, pós-graduação, incubadora de empresas, auditório e espaços de exposição – tudo o que a esdi poderia sonhar para poder crescer adequadamente. o projeto, concluído em 2003, foi votado no consuni como prioritário para a universidade, na medida em que projetava a uerj bem no centro da cidade, através de uma unidade de excelência, mostrando à sociedade carioca a qualidade da produção desta universidade. e depois, este projeto foi engavetado pela universidade por quatro anos...

quanto à inserção da escola num universo acadêmico globalizado, a esdi foi pioneira no estabelecimento de relações internacionais na graduação, e hoje troca estudantes, professores e experiências através de intercâmbios com doze escolas nos estados unidos, alemanha, frança, bélgica, holanda, portugal, finlândia e coréia. e estamos nos preparando para alçar vôos maiores, com o projeto de um doutorado em co-titulação com o reino unido e alemanha. 

mas essa inserção na globalização, não apenas inevitável, mas também necessária e desejável na área do design, nos levou a estreitar laços com grandes empresas, e desenvolvemos projetos em parcerias com a microsoft, yahoo, electrolux, e com a motorola, que chegou a construir e equipar um laboratório na escola. nestes projetos sempre nos destacamos pela qualidade do trabalho desenvolvido pelos nossos alunos, diante dos outros participantes internacionais. 

enquanto trabalhávamos em tecnologias para o futuro, a escola também procurava estimular o pensamento sustentável. e foi assim que apoiou o projeto de pesquisa de um ex-aluno, cláudio ferreira, sobre materiais naturais sustentáveis, projeto este que acabou trazendo para a esdi, em 2005, o mais importante prêmio de design que existe no mundo, em sua categoria máxima, o prêmio if gold pelo desenvolvimento do compensado de pupunha. outros materiais vieram depois deste, e diversos outros prêmios também. 

a curiosidade sobre a produção da esdi despertou a curadoria do salone satellite, em milão, que convidou a escola a participar da exposição que é a grande lançadora de talentos mundiais em 2006, e lá nos apresentamos exatamente mostrando essas pesquisas sobre novos materiais, invertendo o olhar que o mundo têm sobre o brasil, como produtor de matéria prima de alta qualidade extraída das nossas grandes reservas e vendida a preço vil no mercado internacional. mostramos um outro brasil, que usa a criatividade de forma consciente do seu papel na preservação e na exploração sustentável dos recursos naturais. 

o grupo de estudantes envolvidos no projeto de materiais naturais sustentáveis hoje se encontra abrigado na nossa incubadora de design, a design.inc, e continua ganhando prêmios e alcançando notoriedade, além de desenvolver projetos em parceria com a escola, como um grande laboratório que tem sido negociado com o bndes por dois anos, com apoio ainda da embraer e da faperj, e que, se tudo der certo, estará de pé em 2009. 

mas a sustentabilidade foi também tema de um belíssimo projeto desenvolvido por estudantes da escola, com apoio da fundação odebrecht, junto a comunidades quilombola no sul da bahia. o projeto, que procurou instrumentar essas comunidades para melhor aproveitar a piaçava em todo o seu ciclo, foi desenvolvido em conjunto com uma das escolas alemãs parceiras da esdi, e teve resultados e proporcionou experiências para professores e estudantes que foram emocionantes.

alta tecnologia caminhando ao lado de projetos com alta consciência ecológica e preocupação com a sustentabilidade são hoje a marca da esdi. e isso foi reconhecido no ano passado, quando a escola, depois de obter a maior média nacional no enade na área de design, e de ter sido apontada pelo guia do estudante como a melhor do país, foi ainda classificada pela revista americana business week como uma das quarenta melhores escolas de design do mundo.

essa é a escola na qual passei, com muito orgulho, estes vinte e cinco anos de uerj que celebro hoje. ou vinte e nove, incluindo meus anos de estudante...

mas como sempre, esse sucesso da escola se fez com o envolvimento e a dedicação de muitas pessoas. e eu não poderia deixar de mencionar quatro personalidades marcantes que conheci nestes anos todos, e que muito influenciaram os meus passos. e nestas quatro pessoas eu homenageio os outros tantos que igualmente contribuíram para essa longa caminhada. 

o primeiro, roberto verschleisser – foi aluno da primeira turma da esdi e meu professor logo no primeiro ano da escola. dele aprendi e herdei o entusiasmo pela atividade do design e a emotividade paternal de apreciar, frequentemente até as lágrimas, o sucesso de alunos e ex-alunos. sem dúvida a escola vai perder um pedaço da sua história com a sua aposentadoria neste final ano.

carmen portinho – pioneira, conduziu com firmeza a esdi por vinte anos, mantendo-a incólume durante os anos de chumbo, com muito jogo de cintura... e, por algum motivo, resolveu que eu podia ser professor!

pedro luiz pereira de souza – professor, amigo, designer e filósofo, biógrafo da esdi e historiador do design brasileiro. companheiro de projetos e a quem eu credito ter me empurrado da beira do abismo para que eu pudesse, um dia, alçar vôos mais elevados. (continuo tentando, pedrão!)

por último, freddy van camp – também professor e amigo, companheiro de inúmeras lutas, com um conhecimento enciclopédico de design, e contatos no mundo todo. devo tantos ensinamentos a ele que é difícil resumir em poucas palavras.

a família é sempre a primeira e maior sacrificada quando nos dedicamos desta maneira – vestindo a camisa – à instituição. e estes vinte e cinco anos viram nascer meu melhor projeto como designer e como pessoa, meu filho raul, e viram ir embora meu maior exemplo de integridade e de luta, meu pai raul. por eles, com muito orgulho, é que procurei dar o melhor de mim para esta instituição. por respeito ao que recebi e por respeito ao que deixarei.

e assim, amigos, resumo este trajeto, que certamente tem muito em comum com o trajeto de tantos dos meus colegas e amigos que hoje recebem, comigo, esta homenagem.

e a vocês todos eu dedico estas palavras.



gabriel patrocínio


04.12.2008